Encontro em Samarra (W. Somerset Maugham)

Havia um mercador em Bagdá que enviou seu servo ao mercado para comprar provisões. Pouco depois o servo voltou, pálido e trêmulo, e disse:
— Mestre, agora mesmo, quando eu estava no mercado, fui empurrado por uma mulher da multidão; quando me virei, vi que era a Morte que me havia empurrado. Ela olhou para mim e fez um gesto de ameaça; ora, empreste-me seu cavalo e eu cavalgarei para longe desta cidade e evitarei meu destino. Irei para Samarra, e lá a Morte não me encontrará.
O mercador emprestou-lhe seu cavalo e o servo montou, fincou as esporas nos flancos dele e se foi tão rápido quanto o cavalo podia galopar. Então o mercador desceu ao mercado, me viu no meio da multidão e veio até mim, dizendo:
— Por que você fez um gesto de ameaça para meu servo, quando o viu esta manhã?
— Aquele não foi um gesto de ameaça — respondi — foi apenas um movimento de surpresa. Fiquei espantada ao vê-lo em Bagdá, pois esta noite eu tinha um encontro marcado com ele em Samarra.

Pneumotórax (Manuel Bandeira)

Febre, hemoptise, dispnéia e suores
noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
— Respire.

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— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

A Small Needful Fact (Ross Gay)

Is that Eric Garner worked
for some time for the Parks and Rec.
Horticultural Department, which means,
perhaps, that with his very large hands,
perhaps, in all likelihood,
he put gently into the earth
some plants which, most likely,
some of them, in all likelihood,
continue to grow, continue
to do what such plants do, like house
and feed small and necessary creatures,
like being pleasant to touch and smell,
like converting sunlight
into food, like making it easier
for us to breathe.

Mesa (Ana Martins Marques)

Mais importante que ter uma memória é ter uma mesa
mais importante que já ter amado um dia é ter uma mesa sólida
uma mesa que é como uma cama diurna
com seu coração de árvore, de floresta
é importante em matéria de amor não meter os pés pelas mãos
mas mais importante é ter uma mesa
porque uma mesa é uma espécie de chão que apoia
os que ainda não caíram de vez.

Estreito (Guilherme Gontijo Flores)

Enviados ao
terreno
com o inequívoco rastro:

capim, escrito à parte. As pedras, brancas,
com as sombras dos talos:
Leia não — olhe!
Olhe não — vá!

Vá, tua hora
não tem irmãs, você está —
está em casa. Uma roda, lenta,
gira em si mesma, os raios
sobem,
sobem em campo breu, a noite
não pede estrela, nenhures
perguntam por você.

*

Nenhures
perguntam por você —

O lugar onde jaziam tem
um nome — tem
nenhum. Não jaziam ali. Algo
jazia entre eles. Não
viam através.

Não viam, não,
falavam de
palavras. Nenhum
despertou, o
sono
veio sobre todos.

*

Veio, veio. Nenhures
perguntam —

Eu sou, eu,
eu jazia entre vocês, estava
aberto, estava
audível, tiquei pra vocês, seu alento
assentiu, sou
eu ainda, vocês
dormem sim.

*

Sou eu ainda —

anos.
Anos, anos, um dedo
tateia acima, abaixo, tateia
em torno:
Suturas, palpáveis, aqui
tudo se fende à parte, aqui
tudo se junta outra vez — quem
o cobriu?

*

O cobriu —
quem?

Veio, veio.
Veio uma palavra, veio,
veio pela noite.
queria luzir, queria luzir.

Cinzas.
Cinzas, cinzas.
Noite.
Noite-e-noite. — Vá
no olho, no úmido.




no olho,
no úmido —

ciclones.
ciclones, desde sempre,
borrasca de partículas, o outro,
você
bem sabe, nós
o lemos no livro, era
opinião.

Era, era
opinião. Como
nos tocamos —
como com
estas
mãos?

Também está escrito que.
Onde? Nós
fizemos silêncio sobre isso,
veneno-estático, imenso,
um
verde
silêncio, um sépalo, nele
pende um pensamento de vegetal —

verde, sim
pende, sim
sob um perverso
céu.

De, sim,
vegetal.

Sim.
Ciclones, borras-
cas de partículas, sobrou
tempo, sobrou,
pra tentar com a pedra – ela
foi acolhedora, ela
não cortava a palavra. Como
estávamos bem:

granulada,
granulada e fibrosa. Hasteada,
densa;
uval e radiante; renal,
plana e
grumosa; porosa, rami
ficada – ela, isso
não cortava a palavra,
falava:
falava com gosto a olhos secos, antes de cerrá-los.

Falava, falava.
era, era.

Nós
não cedemos, paramos
de pé no meio, um
prédio-poro, e
ele veio.

Veio sobre nós, veio
através, remendou
invisível, remendou
na última membrana,
e
o mundo, um milicristal,
medrou, medrou.



Medrou, medrou.
Então —

Noites, desmistas. Círculos
azuis ou verdes, rubros
quadrados: o
mundo põe seu mais íntimo
em jogo com as novas
horas. — Círculos,
rubros ou negros, claros
quadrados, sem
sombra de voo,
sem
prancheta, sem
alma-fumo que sobe e segue o jogo.



Sobe e
segue o jogo —

No voo da coruja, junto
à lepra pétrea,
junto
às nossas mãos fugidas, na
mais nova recusa,
sobre
o para-balas no
paredão enterrado:

visível, de
novo: os
sulcos, os

coros, outrora, os
salmos. Ho, ho-
sianna.

Assim
estão de pé os templos. Uma
estrela
talvez mantenha a luz.
Nada,
nada está perdido.

Ho-
sianna.

No voo da coruja, aqui
as conversas, gris-dia,
dos rastros de aquíferos.



( — — gris-dia,
dos rastros de aquíferos —

Enviados ao
terreno
com
o inequívoco
rastro:

Capim.
Capim,
escrito à parte.)

(Tradução de Engführung, de Paul Celan)

Engführung (Paul Celan)

VERBRACHT ins
Gelände
mit der untrüglichen Spur:

Gras, auseinandergeschrieben. Die Steine, weiß,
mit den Schatten der Halme:
Lies nicht mehr – schau!
Schau nicht mehr – geh!

Geh, deine Stunde
hat keine Schwestern, du bist –
bist zuhause. Ein Rad, langsam,
rollt aus sich selber, die Speichen
klettern,
klettern auf schwärzlichem Feld, die Nacht
braucht keine Sterne, nirgends
fragt es nach dir.
*

Nirgends
fragt es nach dir –

Der Ort, wo sie lagen, er hat
einen Namen – er hat
keinen. Sie lagen nicht dort. Etwas
lag zwischen ihnen. Sie
sahn nicht hindurch.

Sahn nicht, nein,
redeten von
Worten. Keines
erwachte, der
Schlaf
kam über sie.
*

Kam, kam. Nirgends
fragt es –

Ich bins, ich,
ich lag zwischen euch, ich war
offen, war
hörbar, ich tickte euch zu, euer Atem
gehorchte, ich
bin es noch immer, ihr
schlaft ja.
*

Bin es noch immer –

Jahre.
Jahre, Jahre, ein Finger
tastet hinab und hinan, tastet
umher:
Nahtstellen, fühlbar, hier
klafft es weit auseinander, hier
wuchs es wieder zusammen – wer
deckte es zu?
*

Deckte es
zu – wer?

Kam, kam.
Kam ein Wort, kam,
kam durch die Nacht,
wollt leuchten, wollt leuchten.

Asche.
Asche, Asche.
Nacht.
Nacht-und-Nacht. – Zum
Aug geh, zum feuchten.
*

Zum
Aug geh,
zum feuchten –

Orkane.
Orkane, von je,
Partikelgestöber, das andre,
du
weißts ja, wir
lasens im Buche, war
Meinung.

War, war
Meinung. Wie
faßten wir uns
an – an mit
diesen
Händen?

Es stand auch geschrieben, daß.
Wo? Wir
taten ein Schweigen darüber,
giftgestillt, groß,
ein
grünes
Schweigen, ein Kelchblatt, es
hing ein Gedanke an Pflanzliches dran –

grün, ja
hing, ja
unter hämischem
Himmel.

An, ja,
Pflanzliches.

Ja.
Orkane, Par-
tikelgestöber, es blieb
Zeit, blieb,
es beim Stein zu versuchen – er
war gastlich, er
fiel nicht ins Wort. Wie
gut wir es hatten:

Körnig,
körnig und faserig. Stengelig,
dicht;
traubig und strahlig; nierig,
plattig und
klumpig; locker, ver-
ästelt –: er, es
fiel nicht ins Wort, es
sprach,
sprach gerne zu trockenen Augen, eh es sie schloß.

Sprach, sprach.
War, war.

Wir
ließen nicht locker, standen
inmitten, ein
Porenbau, und
es kam.

Kam auf uns zu, kam
hindurch, flickte
unsichtbar, flickte
an der letzten Membran,
und
die Welt, ein Tausendkristall,
schoß an, schoß an.
*

Schoß an, schoß an.
Dann –

Nächte, entmischt. Kreise,
grün oder blau, rote
Quadrate: die
Welt setzt ihr Innerstes ein
im Spiel mit den neuen
Stunden. – Kreise,

rot oder schwarz, helle
Quadrate, kein
Flugschatten,
kein
Meßtisch, keine
Rauchseele steigt und spielt mit.

*

Steigt und
spielt mit –

In der Eulenflucht, beim
versteinerten Aussatz,
bei
unsern geflohenen Händen, in
der jüngsten Verwerfung,
überm
Kugelfang an
der verschütteten Mauer:

sichtbar, aufs
neue: die
Rillen, die

Chöre, damals, die
Psalmen. Ho, ho-
sianna.

Also
stehen noch Tempel. Ein
Stern
hat wohl noch Licht.
Nichts,
nichts ist verloren.

Ho-
sianna.

In der Eulenflucht, hier,
die Gespräche, taggrau,
der Grundwasserspuren.
*

(– – taggrau,
der
Grundwasserspuren –
Verbracht
ins Gelände
mit
der untrüglichen
Spur:

Gras.
Gras,
auseinandergeschrieben.)

Psicologia de um vencido (Augusto dos Anjos)

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!