Dois cadáveres para uma loura (Sérgio Sant'Anna)

Dois homens e uma mulher, cujos nomes podem ser, perfeitamente, Tatiana, Maldonato e Jan. Estão diluídos na obscuridade, talvez da madrugada, ou porque se encontram num porão. Não se podem definir, por isso, seus traços fisionômicos. Mas se presume que Tatiana é bonita, por causa do nome — Tatiana — e do mistério que a cerca. E porque os dois homens se encontram ali, ao seu redor, numa espécie de homenagem. Maldonato, que possui um aspecto sombrio dentro de todas aquelas sombras e uma sombra maior em seu rosto, a barba negra e crescida. E Jan, com uma silhueta mais fina e portanto ele é magro e seus gestos são elegantes mas nervosos.
Eles estão ali, quase parados e num cenário que também não se identifica com precisão. Mas julga-se ouvir, por vezes, pequenos ruídos, de respirações ou sussurros e do arrastar lento de pés num lugar abafado, onde parece haver uma nervosa falta de ritmo. Talvez os dois homens estejam prestes a lutar por causa de Tatiana, pois é uma boa explicação para dois homens na penumbra, separados por uma bela e jovem mulher. Loura, provavelmente, porque as louras se prestam melhor a essas paixões. E sangue, com certeza, será o desfecho macabro dos acontecimentos, quando a lâmina fria de um punhal penetrará no coração de um dos contendores. Ou, talvez, matar-se-ão os dois simultaneamente, transformando o título trágico desta história em "Dois cadáveres para uma loura". Uma história que aparecerá nas manchetes dos jornais sensacionalistas de uma cidade qualquer. A menos que não passe tudo de uma farsa: os dois homens se batendo de mentira, documentados por uma câmera fotográfica, na realização da fotonovela também intitulada "Dois cadáveres para urna loura". Ou, ainda, posando para fotos publicitárias de uma indústria de desodorantes. Os dois rivais simplesmente não podem resistir à fragrância que emana daquela mulher.
Pode ser, entretanto e ao contrário, que estejam os três ali, amistosamente, com um objetivo comum. Eles esperam o próximo amanhecer, quando aquele cômodo se tornará claro e identificável e eles descerão por uma escada ou elevador e se encontrarão nas ruas de uma cidade também reconhecível. Londres, por exemplo. no bairro de South Kensington. E eles três, carregados de malas, tomarão o táxi que os conduzirá à estação Victoria, onde já os espera uma quarta mulher: Raquel. E mais despertos e animados, a essa altura, embarcarão no trem que os levará a uma outra cidade. Liverpool, por exemplo, onde gozarão os dias felizes e despreocupados de suas férias.
Mas se aquilo for um porão e não um apartamento eles subirão uma  escada, ao invés de descê-la, e se encontrarão, assustados, nas ruas de uma cidade desconhecida, pois são fugitivos. Os dois homens e a mulher loura que assaltaram, há três dias, o Banco de Hamburgo e em cujo rastro se mobiliza toda a Interpol. Eles vieram fugindo num carro roubado e aguardam o amanhecer para a partilha daquelas notas que totalizam trezentos mil marcos.
Ou talvez ainda nem haja se concretizado o golpe. Eles esperam, então, o amanhecer, para montarem em seus cavalos, aguardando, em tocaia, a diligência de Passo Fundo. É um cenário interior, a obscuridade não possibilitando que se identifique, pelos trajes e móveis, a época. Podemos estar no período da colonização americana, numa cidade do legendário Oeste. Ou mesmo num estúdio às escuras, enquanto se preparam os refletores para as filmagens de Os últimos bandoleiros.
Eles três, ali, naquele quarto ou porão. Talvez não passem de manequins, à espera de serem vestidos e dispostos na vitrina de uma loja. Talvez nem sejam dois homens e uma mulher, mas bonecos sem sexo, o que irão adquirir com a roupagem. Poderão tornar-se um homem de traje esporte, uma jovem em lingerie e outro homem, de terno.
Uma obscuridade tal, ali naquele quarto ou porão, que pode tratar-se apenas de sombras e não de pessoas ou bonecos de verdade. Reflexos pálidos da lua projetando na parede sombras de árvores, móveis e roupas dependuradas. Na parede branca de um quarto onde se acha alguém profundamente adormecido. Ou, possivelmente, eles são apenas os fantasmas interiores dessa pessoa adormecida, a se manifestarem num sonho que logo se dissipará.
Ou, ainda e simplesmente, personagens de ficção. Eles se encontram ali, numa página qualquer de um livro empoeirado, na expectativa de um leitor que os leia.
Ou, talvez, personagens de um livro que ainda não foi escrito. Nesse caso, encontram-se eles — Tatiana, Maldonato e Jan — à espera de quem os escreva.